A língua estrangeira na primeira infância

Há um fato recente que tem chamado a nossa atenção: a busca de alguns pais de crianças muito pequenas por escolas ditas bilíngues. Muitos desses pais não são nativos de países de língua estrangeira, e tampouco falam, com fluência, o idioma. Portanto, quais seriam as razões que os levariam a tal decisão?

 

Um componente desta escolha certamente diz respeito à importância dada à língua inglesa no quadro dos imaginários sociais. O “ensino bilíngue de elite” é considerado algo de prestígio, que permitiria às crianças um futuro promissor. Percebe-se, então, que o respeito aos ritmos das crianças, o desenvolvimento de habilidades cognitivas e emocionais fundamentais na primeira infância, o incremento da língua materna e ainda, a qualificação dos profissionais que atuam com crianças dessa faixa etária, são deixados em segundo plano.

 

A formação mínima exigida para trabalhar na educação infantil é graduação em Pedagogia. Assim sendo, professores de escolas bilíngues devem estar devidamente capacitados na área da educação infantil, além de terem proficiência na língua inglesa.  A maneira como algumas escolas lidam com a exigência mínima prevista na lei muitas vezes passa desapercebida, muito embora seja fundamental e essencial para a educação da crianças.

 

A primeira infância é uma época extremamente sensível, que demanda a criação de bons vínculos e condutas educacionais conscientes e acolhedoras. Uma educação baseada nestes princípios, respeita o ritmo infantil e poupa a criança de complexidades desnecessárias. Sempre que os adultos consideram as reais necessidades dos pequenos, a vida passa a ter grandes chances de avançar em direção à saúde e ao bem-estar.

 

A língua estrangeira é, por definição, uma segunda língua aprendida, que tem como referência a primeira língua. O confronto que ocorre entre a primeira e a segunda língua nunca é sem importância. A didática de escolas bilíngues não considera esse conflito. Tais escolas negligenciam o fato de que, muito antes de poder articular o mínimo som, a criança já se encontra imersa em um universo de palavras completamente dotadas de afeto e significação no idioma dos pais.

A criança não é surda às falas do seu ambiente. A audição é o sentido mais desenvolvido do feto, e o recém-nascido tem a capacidade de identificar as vozes, as músicas e os fonemas da língua na qual está inserido. Ao cuidar de uma criança, as pessoas traduzem, em palavras, seus sentimentos em relação a ela. Fazem uso das palavras para interpretarem o que a criança sente ou necessita, nomeando as sensações, os afetos e os objetos do mundo. Sendo assim, as descobertas das palavras e das significações não se separam das experiências e dos vínculos com os outros. A voz e as palavras da mãe são fontes de prazer ou de desprazer e têm o poder de interferir em todas as demais sensações. A língua materna não se separará jamais dessa sedimentação afetiva.

 

“O eu da língua estrangeira não é, jamais, completamente o da língua materna, e muitas vezes a experiência de um investimento em uma língua estrangeira é acompanhado de um sofrimento psíquico vivo.” (SIGNONINE)

 

Sendo assim, por que não preservar a sedimentação da língua materna e, posteriormente, introduzir o inglês, ou francês, ou alemão, para que as crianças possam aprender esse segundo idioma, sem prejuízo do primeiro? Uma vez que vivemos em uma sociedade monolíngue, na qual todos os cidadãos falam o português, incluindo os próprios pais, não faz sentido privá-las de falar a língua materna com os amigos e com todas as pessoas que lhe são caras.

 

É muito difícil para alguns bebês e crianças pequenas serem colocados em situações em que não conseguem entender o que está sendo dito a eles. A sensação de ser totalmente dependente de alguém que não fala a sua língua pode ser geradora de muita angústia.

 

É preciso esclarecer os mitos quanto ao ensino e a aprendizagem da língua inglesa. Um deles, amplamente divulgado, é denominado Hipótese do Período Crítico, crença de que quanto mais cedo a criança começar a estudar inglês, mais facilmente ela aprenderá essa língua. Dentro dessa mesma perspectiva, também se afirma que as crianças aprendem uma língua estrangeira melhor do que os adultos, muito embora vários estudos evidenciem que não existe tal idade ideal.

 

As crianças, de um modo geral, possuem grande habilidade para construir significados por meio de interações e experiências que lhes são proporcionadas. Apesar de uma significativa parte das crianças da atualidade estarem inseridas em uma comunidade global, onde têm acesso às tecnologias de comunicação desde muito cedo, assistindo à televisão, ouvindo músicas internacionais e tendo acesso à Internet e, consequentemente, às línguas estrangeiras desde pequenas, é importante destacar que a capacidade de se expressar e entender sua língua materna é condição fundamental para que a criança viva a plenitude do contexto na qual está inserida.

 

 

Além disso, em muitos casos, o período de alfabetização acaba se configurando como uma época crítica para crianças inseridas em escolas bilíngues, dadas as dificuldades de diferenciação de fonemas em português e inglês, uma vez que a criança passa a ter conhecimento de vocabulário em outra língua. Não há como conciliar o aprendizado escrito de uma língua depois da tentativa de inserção da criança no vocabulário de outra língua. A língua escrita configura-se como um simbolismo de segunda ordem, ou seja, ela tem como referência a língua falada para ganhar corpo e significado. Sendo assim, esperar a alfabetização na língua materna para introduzir uma nova língua no universo infantil é algo prudente e recomendável. O essencial na primeira infância é um ensino afetivo, delicado e feito por pessoas bastante qualificadas a fim de evitar desajustes, agitações e desconfortos desnecessários.

 

Além disso, uma pessoa que não seja totalmente proficiente na língua que usa para se comunicar com uma criança pode atrapalhar a comunicação. Se a habilidade de um professor em se expressar em inglês é limitada (casos mais comuns), deve-se ponderar a qualidade da relação da comunicação e do desenvolvimento linguístico da criança com a meta do bilinguismo.

 

E, muito importante a ser pontuado: não se pode, em absoluto, deixar em segundo plano a relação da criança com a língua materna e a cultura na qual está inserida. Ricas em experiências afetivas, são essas últimas que servirão de suporte para a construção da identidade e de significados dos elementos da própria vida dos indivíduos.

 

 

Em suma, a educação, principalmente na primeira infância, precisa voltar-se aos valores humanos, com respeito ao tempo e aos ritmos internos das crianças. O resultado desse descuido pode ser visto no desinteresse das crianças pela aprendizagem, na falta de limites e de espírito de colaboração, na agitação excessiva e no aumento dos quadros de depressão infantil. É urgente que tomemos consciência da necessidade da escola formar seres humanos e não apenas seres informados.

 

“A língua está atrelada à cultura e influencia nossa vida de modo imensurável. Bebês e crianças aprendem a língua em contextos naturais quando alguém fala com eles, reage ao que eles dizem e presta atenção em sua fala. A língua influencia o modo como eles percebem o mundo, organizam suas experiências e se comunicam com outras pessoas.” (GONZALEZ-MENA & EYER)

 

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